domingo, 15 de julho de 2012

domingo, 25 de março de 2012

A Dama da Bacia O Mestre e o Saco

O som de um saco de latas zunindo na calçada, trazia consigo a Dama da Bacia, como também era chamada, a Senhora da Calçada. 
Arrastando o saco de plástico preto pontiagudo, alongava uma cerimoniosa conversa com seu mentor imaginário.
- Mestre Kong, ao afirmar que “devemos ter cuidado com os nossos pensamentos, porque eles determinarão nossas ações; ter cuidado com nossas ações porque elas determinarão os nossos hábitos; cuidado com os nossos  hábitos, porque eles determinarão o nosso destino” decerto estarei certa se afirmar que devemos ter cuidado com nosso destino, porque ele determinará a nossa cova, cuidado com nossa cova porque ela determinará nossa profundidade, cuidado com nossa profundidade porque ela determinará nossa loucura, cuidado com nossa loucura porque ela determinará nossa razão, cuidado com nossa razão porque ela determinará nossa solidão, cuidado com nossa solidão porque ela determinará nossa dor, cuidado com nossa dor porque ela determinará nossa amargura, cuidado com nossa amargura porque ela determinará nossas mágoas, cuidado com nossas mágoas porque elas determinarão nossa falta de perdão, cuidado com nossa falta de perdão porque ela determinará nosso orgulho, cuidado com nosso orgulho porque ele determinará nosso silêncio, cuidado com nosso silêncio porque ele pode esvaziar nosso coração.
Parou, sustentou o ar sem palavras, segurando o saco preto transpirando a cerveja.
- Diga Mestre Kong, decerto estarei certa... Prosseguiu, entregando sua voz à dobra da esquina, deixando para trás, a ressonante marca do pesado saco na calçada.
La Vecchia -1508de Giorgione  
 

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

brincando com a lua

Esconde-se lua, se esconde
Você pensa que não te enxergo
Até faço de conta para agradá-la
Mas te vejo, e você se esconde
Aparece quando finjo que não te olho
Lua brinca brincalhona
Puxando a nuvem que não se importa
Lua fingidora
Tira a roupa atrás da nuvem
E volta se fazendo passar por nua
Lua brincalhona
Vai se esconde
Que eu finjo que não te vejo
Assim a noite te corteja
E eu a terei mais tempo
Brincando com meus olhos.

domingo, 11 de dezembro de 2011

uivos e ouvidos

Um cão uivava infausto, espalhando um chamado lamentoso de dar dó a qualquer um que o ouvisse. Os uivos se propagavam abocanhando o espaço, interrompendo o silêncio, atravessando janelas, chegando aos ouvidos, soando o dito popular: “um cão uivando anuncia a morte de alguém”. 
Foi o alarme para meus poros se esgazearem num balé de pelos arrepiados. Procurei uma superfície de madeira e bati três vezes, dissolvendo assim a possibilidade do dito acontecer.
Dito fora e arrepiados pelos aos seus poros, fui à mente e imaginação até o suposto lugar onde o cão estaria. Especulei vê-lo no quintal de uma casa, acorrentado, uivando a ausência de seus donos...Talvez dentro de um buraco, caído por descuido à própria sorte e desorientação. 
Triste imagem, para um uivo que poderia ser um ulular de felicidade por uma cadela no cio.  
E num pouso brusco, a mente aterrissou forçada pelo silencio que engolira os uivos.
Contudo, os uivos ausentes, não eram o suficiente para aquietar a imaginação. Se os uivos cessaram é porque os donos chegaram, acabando assim sua aflição!  A menos que a fêmea tenha dado ouvidos aos seus uivos e se deixado... E uma britadeira se interpôs estridente, interrompendo a divagada imaginação.
Só poderia ser um conserto de alguma companhia de serviços: light, net, gás, sky, telefone... 
E os ouvidos, agora sem os uivos, atentos aos demais ruídos, prosseguiram cúmplices da imaginação.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

pressa

A moça tinha pressa
Muita pressa
Tanta pressa
Que tomou um ônibus
E se engasgou
Moça apressada essa.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

senhora da calçada

A Senhora da calçada era figura folclórica no bairro. Conhecida e admirada por todos suscitava as mais variadas versões sobre sua origem, desde ser humilde com alma de nobre a uma nobre que, por opção, virara humilde. O fato é que ninguém sabia de sua verdadeira origem ou passado. E ela, a Senhora da Calçada, jamais revelara qualquer informação que desvendasse sua misteriosa história.O certo é que chamava a atenção pela sua maneira distinta de andar e falar e criativa de se vestir. Vestia andrajos exóticos e exclusivos criados e confeccionados por ela. Além de versáteis chapéus, acessório comum, não fosse o fato dos chapéus serem bacias, sua assinatura inconfundível.
Catadora de latas tinha acesso aos mais variados acervos de objetos e materiais para suas criações. Falava muito e sozinha, brigava consigo, fazendo de si, duas. Uma culta, a outra medíocre, uma sábia, a outra descabida.
- Cala a boca! Se taire! Chiudere! Opsluiten!
Esbravejava a Senhora da Calçada vestida de sacolas plásticas amarradas umas as outras, formando um vestido pontiagudo e disforme, caimento estranho e nela, caiam muito bem. Na cabeça, um chapéu bacia de metal do tamanho de um prato de sopa.
- Não suporto quando você fala, não suporto sua voz, o que você diz. O que você diz? Só diz gówno, cachu, merde... Orquestrava suas palavras com o som das latas sendo pisoteadas.
- Você sabia que a cerveja foi provavelmente a primeira bebida alcoólica que o ser humano criou? Não sabia!!!
- Sabia que a cevada já era conhecida pelos sumérios, egípcios e mesopotâmios antes de 4.000 a.c? Não sabia!!!! Você não sabe nada, nada e você não fala nada, porque não sabe nada! Então cala a boca! Menutup! Menutup!
- Cala a boca já morreu quem falou pro padre que não queria casar fui eu!! Pisou no coco! Pisou no coco!  Fedeu, cheirou, chorou de tanto fedor!
- Não pisei, desviei, não pisei!
- Pisou! Pisou! Eu vi! Não adianta disfarçar, tá fedendo! Seu cérebro fede, acha que sabe mais que eu e não sabe nada! Cérebro fedido de coisa velha, não vale o valor das latinhas que recolhe!
- Cala a boca! Se taire! Chiudere! Opsluiten!

- Cala a boca já morreu quem pintou a boca fui eu!!! Recolhe suas latinhas, conta suas moedinhas, come sua comidinha sua velhinha, puxa o saco sacolinha, conta lata, sua velhinha, junta moedas para sua comidinha. Mora na rua pobre velhinha, rainha da latinha amassadinha, com cheiro de cervejinha!
- Cala a boca! Se taire! Chiudere! Menutup! - Esbravecia a nobre senhora, enquanto arrastava o preto saco plástico abarrotado de latas de cerveja amassadas.
- Recolhe suas latinhas, conta moedinhas, come sua comidinha... Cantarolava a senhora pela calçada, em uma acintosa troca de farpas consigo mesma.

domingo, 20 de novembro de 2011

garota tautológica

A garota já subira para cima algumas vezes, já descera para baixo mais outras tantas, chamando a atenção em sua chegada de um fôlego só. Sentou-se ao meu lado, alisou o vestido seguindo os traços de suas pernas, enlaçou os cabelos longos na mão e os rodopiou escorrendo uma trança sem nós. Da sua chegada as suas ações de acomodar-se, descreveu todo o percurso que fizera para chegar a tempo de tomar aquela lotação.
- Esta vã demora demais!! Estava há  45minutos na parada. Perdi a que vinha antes anteriormente, e aí, já viu... Tudo por causa daquela cara de nada da minha chefa...
Concordei com a cabeça numa simpatia pé atrás. Virei o rosto amparando minha atenção para além da janela, na tentativa de não me envolver em sua conversa ou, pelo menos, envolver meus ouvidos, já que a garota não parava de falar.
 Abri a bolsa, apanhei o celular apelando para um álibi, enquanto sua voz ecoava por todo o coletivo.
- Eu vinha descendo as escadas para baixo quando minha chefa chamou. E quando ela chama tem que correr correndo, ela não suporta ficar esperando. Voltei e subi as escadas pra cima com um pé chutando o outro. Cheguei lá e ela tava com a maior cara de nada, me olhou e me disse: esqueci!! Com cara de nada! Aaai, fiquei furiosa, me retardou mais de 10 minutos de atraso! Mas deixa quieta, hoje eu vou à gafieira e tenho certeza absoluta que eu vou arrasar quando dançar com o Evaldo.
A garota parecia ter sido acometida por uma taquicardia oral. Manuseei o celular e simulei ligar levando ao ouvido, sem saber qual seria o próximo passo. Nessas alturas do trajeto, a lotada vã já interagia com a garota tautológica.
- Vocês têm que ver, lá na gafieira uma multidão de pessoas fica até amanhecer o dia.
Há anos atrás, eu namorava um vereador da Cidade. Eu chegava com ele de carrão placa branca e com motorista, fazia o maior sucesso! Hoje eu faço sucesso quando me enrosco a dançar com o Evaldo.
Nesse momento se formou um coro de passageiros ávidos em saber o nome do tal vereador. Fala o nome do safado, disse uma mulher próxima ao nosso banco.
- Ah , não! eu não vou falar por que ele tá  sendo procurado, roubou o dinheiro da merenda das crianças.  E eu não quero encrenca pro meu lado!
O celular continuava colado ao meu ouvido, e eu, muda, disfarçava o indisfarçável diante daquela platéia atenta e inquieta.
- Aí, gente! Já foi!  Essa é a última versão definitiva! Tô noutra, tô com o Evaldo !! E vou gritar bem alto pra que todos saibam: AMO MEU EVALDO!!! Somos duas metades iguais, tipo alma gêmea, sabe!
- Evaldo! Evaldo! Ovacionava a lotada condução, íntimos da garota tautológica.
- E aí, onde cê conheceu este herói?? Perguntou uma voz feminina no fundo da vã.
- Amiga! Conheci ele na loja que trabalho, ele era o acompanhante da D Lili, mãe da minha patroa. Quando olhei pra ele com meus olhos, tive uma surpresa inesperada. Eu tinha visto ele uma vez na gafieira, mas não tinha encarado ele de frente.  Ambos  os dois disfarçaram, mas  o cupido já tinha  flechado. Pouco tempo depois, D Lili faleceu, eu fui ao enterro e encontrei ele de novo e ai, amiga, a gente não deixou mais de conviver junto! Ele é o meu homem... e chega de detalhes minuciosos - concluiu, para a decepção  dos curiosos.
- Olha pessoal, tá chegando minha parada!  Vão lá na Gafieira!! Sexta,  sábado e domingo,  inclusive, vou dançar juntamente com o Evaldo. Eu não sei a quantia exata do ingresso porque eles fazem promoção! - falou, já se embrenhando entre as pessoas de pé, no estreito corredor do veículo.
- Ah! - exclamou, segurando o corrimão junto à porta de saída - é expressamente proibido se exceder muito na birita...
Disse e desceu, sugerindo pressa no andar.
Fechada a porta o burburinho de todos foi unânime: que furacão de mulher!
A mim, ficou a leve sensação de ter sido contaminada por aquela garota pleonasticamente tautológica e falante.